Além da série histórica das pesquisas desde o lançamento da candidatura presidencial de Dilma colocando-a como favorita e demonstrando a força desse projeto, chama a atenção a virtual quebra ideológica e programática da candidatura Serra. Seu desfibramento não pode ser avaliado apenas por erros de campanha. É mais profundo, a ponto de se afirmar que 2010 não é um prolongamento de 2006, quando se configurou o que chamamos, então, de disputa de projetos. A proposta neoliberal quebrou e não foi substituída. De outro lado, as conquistas do governo Lula vão se transformando em projeto hegemônico. A conjuntura atual é a supremacia do projeto Lula-Dilma. Sua transformação em vitória eleitoral é o desafio.
O desmanche do neoliberalismo brasileiro
Já em 2006, especialmente no 2º turno, ficou demonstrada a incapacidade do neoliberalismo brasileiro responder ao desafio de dirigir o país novamente. Quando em 1994, com FHC, empalmou a direção do país, foi no auge de um longo impasse nacional, resolvido com o plano real e com uma “vanguarda” política neoliberal, o PSDB, com grande alinhamento internacional, especialmente com os EUA.
A vitória de Lula em 2002 encerrou, parcialmente, a hegemonia neoliberal. Em 2006, já com um novo ciclo (ainda incipiente) de desenvolvimento e mesmo com o PT tendo atravessado sua maior crise, nos anos 2003-05, Lula sagrou-se vencedor política e ideologicamente, com um projeto nacional em construção.
De lá pra cá, tudo piorou para o neoliberalismo. O desenvolvimento nacional ganhou força e uma crise internacional, motivada pelos elementos desencadeados pelo neoliberalismo, fez estragos pelo mundo afora, exceto em países que tinham se protegido com políticas anti-liberais, como o Brasil. E frente a crise, como já observou Juarez Guimarães, o neoliberalismo brasileiro defendeu posições pré-1930, isto é, anti-keynesianas. O governo Lula atuou além do keynesianismo e defendeu o país da crise desde uma perspectiva de esquerda, inclusive elevando o salário-mínimo. Esse processo impulsionou o novo ciclo de desenvolvimento brasileiro; aliado às políticas sociais, ganhou uma nova dimensão, começando a superar limitações históricas do desenvolvimentismo latino-americano (inclusive o famoso teorema da “caixa vazia”, isto é, da ausência de distribuição de renda). Mais do que isso, derrotou o projeto neoliberal. E mostrou isso ao povo.
De um ponto de vista internacional, o neoliberalismo não só perdeu força como deixou se ser uma referência programática – o que não quer dizer que no plano internacional sucedeu algo parecido com o Brasil: a fraqueza das forças de esquerda nos países centrais tem implicado em um campo relativamente livre para a recomposição das forças de direita.
Nesse quadro, a disputa de 2010 não é mais a simples continuidade da de 2006. A disputa de projetos com o programa neoliberal , no mínimo, foi deslocada para questões específicas , embora importantes – como a política referente à taxa de juros e, nesse caso, o embate não é com o PSDB, que foi o responsável pela armadilha financeira, mas diretamente com os interesses financeiros. E também nesse ponto avançamos muito desde 2002. Hoje o Estado conta com fortes bancos públicos e com o BNDES, aliás, o novo alvo de ataque do neoliberalismo.
Mas, é possível avaliar que a vitória foi maior ainda, que a disputa de projetos foi vencida e se trata agora de confirmar e dar o melhor conteúdo ao projeto vencedor. É um processo em curso e que será melhor avaliado em breve.
De todo modo, a base programática e social que sustentou o neoliberalismo brasileiro se esvaiu É por isso que a sustentação da candidatura Serra aparece de modo tão difícil e sua identidade tão desfigurada.
A construção da nova hegemonia
Já havíamos destacado, no artigo anterior, o legado à esquerda do governo Lula. Esse legado, por certo, não é avaliado em função de uma visão esquemática e sectária; ele deve ser estabelecido por uma visão histórica comparativa e por uma avaliação de quais forças disputam com mais chance sua continuidade. É comparativamente de esquerda no sentido de que derrotou a moderna direita brasileira. E deve ter uma perspectiva histórica para que possa apreender as contradições no seu interior e considerar que a luta dos socialistas para que tenha um curso em direção da democracia e da igualdade deve ser mais forte ainda e com maior potencial de realização, embora, por certo, não esteja resolvida. Mas ela já se dá em uma nova e mais favorável situação histórica.
Estabelecer essa base compreensiva é fundamental para entender a força da candidatura Dilma. Aliás, talvez seu desafio mais claro, provavelmente, tenha sido o de colocar-se à altura de representar esse legado, o que vem conseguindo com sucesso.
O processo eleitoral é, em primeiro lugar, a luta pela vitória em condições dadas. E, com regras eleitorais, isto é, com procedimentos muito rentes ao nível de consciência imediato e simbólico. Assim, ele mais reflete uma situação do que transforma essa situação; mas seu resultado pode deslocar forças e representar uma nova conjuntura. Isso porque a disposição de forças depois da eleição é diferente da atual; sendo repetitivo, a correlação de forças se movimenta a favor das forças vencedoras.
Nesse sentido, a campanha Dilma representa a luta pela vitória nas condições dadas, mas sua vitória pode estabelecer uma conjuntura mais favorável para o avanço das linhas mais progressistas do governo Lula e, assim, consolidar uma nova hegemonia no país.
Em parte esse processo se dá na própria campanha, mas certamente prossegue na hipótese de um governo Dilma. Na campanha, ele se dá com as posições que a candidatura presidencial assume e com as posições que o PT e outros partidos de esquerda conquistem dentro do resultado final. Isso se estende, naturalmente, à luta pelos governos estaduais e pela maior bancada do PT e da esquerda.
O projeto hegemônico e seus desafios
A superação do neoliberalismo brasileiro se dá por vitórias políticas históricas – em 2002, em 2006 e na crise econômica internacional de 2008-09 – e por avanços processuais no governo. Além disso, e não menos importante, por uma recomposição da força social e econômica da classe trabalhadora nos últimos 8 anos. A resultante desse processo não é um programa acabado. É um processo que constrói um programa, que tem um sentido histórico com potencial de desenvolvimento à esquerda, isto é, com espaço crescente para o ideário socialista-democrático. Esse processo em curso, no entanto, já estabeleceu marcos diferenciadores frente ao neoliberalismo por certo, mas também face ao desenvolvimentismo clássico. Em relação ao primeiro, porque não há mais o culto do mercado; em relação ao segundo, e de forma menos conflitiva, porque agora temos desenvolvimento ao mesmo tempo que distribuição de renda. E,como disse o presidente Lula no programa da Dilma, nosso projeto “só está começando”.
Mas se um novo projeto reúne condições de hegemonia, elementos do antigo continuam presentes, mas cada vez mais em contradição com o novo curso. Um desses elementos é o Congresso Nacional, cada vez menos representativo da mudança social (e do potencial de cidadania participativa que ela traz) que ocorre no Brasil.
Um projeto de mudança mais amplo e profundo deverá conter não só a reforma política democrática mas também a democratização de estruturas do poder de Estado. Além disso, e em perspectiva, um avanço histórico de mudanças deve incluir novas relações sociais no campo da economia e da propriedade, no sentido da sua democratização. Em qual tempo isso pode se desenvolver depende da correlação de forças e dos programas reais de transformação. Obviamente, não é o tempo eleitoral imediato, mas o tempo do próximo governo e mesmo dos seguintes. É o tempo aberto por uma mudança importante na correlação de forças que poderá significar a eleição de Dilma e de governadores e parlamentares do PT e da esquerda.
Um problema “externo” que temos de levar em conta é que o ambiente internacional não caminha nessa direção, embora aumentem as contradições dentro do imperialismo. Não há mais a mesma força centralizadora dos EUA, mas é difícil encontrar algum país com desenvolvimento político próximo ao do Brasil. É verdade que o espaço de atuação não controlada pelos EUA aumentou, mas as condições internas tanto dos países centrais como de países com possibilidade de jogar um papel internacional de maior peso não parecem ter evoluído à esquerda com a crise. Nos EUA, onde assistimos a importante derrota dos conservadores com a eleição de Obama, continua prevalecendo a política imperialista ainda que – a avaliar – internamente possam vir a se desenvolver, na sociedade, movimentos democráticos em conflito com o governo democrata.
As decorrências desta observação implicam, em primeiro lugar, em considerar a intervenção internacional do Brasil e do PT um dos elementos importantes da nossa estratégia de construção de uma nova hegemonia; em segundo lugar, a compreensão de que uma aliança renovada entre a direita nacional e a ordem imperialista – um aspecto que sempre marcou a direita brasileira – se constitui como um dos pontos de sustentação da oposição à nova hegemonia.
Essas observações, que projetam um período para além da disputa eleitoral, não pretendem minimizar o problema imediato e decisivo, sem o qual o anterior não vale: é preciso vencer as eleições, transformar em votos e em maioria eleitoral as conquistas que obtivemos nos 8 anos de governo Lula.
Fortalecimento do PT e da esquerda nas eleições
Junto com a eleição de Dilma buscamos a eleição de governos estaduais e da maior bancada do PT e da esquerda. Desde os debates anteriores ao 4º Congresso do PT, em fevereiro, defendemos uma tática conjunta e combinada de conquista desses objetivos, e contra a idéia de luta separada por esses resultados. Nossa posição vem se confirmando. O crescimento da candidatura Dilma é acompanhado pelos crescimento de candidaturas estaduais do PT e da esquerda e do PMDB que apóia Dilma. E ainda das candidaturas ao senado e as proporcionais.
Na verdade, a fonte desse crescimento é a mesma: um governo amplamente aprovado, um presidente com profunda identidade popular e um partido que cresce, novamente, em respeito e em adesão política.
Muitos analistas caracterizam esse fenômeno como lulismo. Poderíamos aceitar essa denominação desde que acrescentada do fato de que com o “lulismo” vem junto o “petismo”. O PT não só recuperou seus índices de partido mais respeitado e de partido de maior simpatia popular como avançou. Em algumas pesquisas chega a 30% de simpatia. Mas o mais interessante é que justamente no amplo setor “lulista” que apóia Dilma, o PT chega a quase 40% como partido preferido.
Essa força política deve buscar a maior vitória dentro da vitória maior que é a eleição de Dilma. Naturalmente ela deve se dar em conjunto com as alianças, sobretudo as com a esquerda dentro da ampla frente que cresce no apoio a Dilma. Mas ela deve ser buscada e dirigida pelo PT no sentido de ampliar ao máximo suas conquistas.
Essa é uma condição fundamental para que a construção da nova hegemonia se desenvolva com uma perspectiva de esquerda.
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