quinta-feira, 7 de julho de 2011

O PT COMO PARTIDO NEGRO

por Afonso Florence


O Brasil é resultado da colonização, parte do processo de constituição e mundialização do capitalismo no período da acumulação primitiva. Até 1822 não havia um Estado brasileiro, pelo contrário, as capitanias hereditárias eram parte do império colonial português. Nos seus primórdios, os colonizadores escravizavam, ou matavam as populações autóctones. Logo em seguida estruturou-se o regime escravista nas terras ocupadas pelo império português na América.
Durante mais de três séculos, o tráfico internacional de escravos incentivou guerras entre povos africanos, desestruturou sociedades, seqüestrou e transportou para as Américas milhões de pessoas escravizadas, a maior diáspora já registrada na história da humanidade. O comércio internacional de escravos e a escravidão nas Américas, e em particular no território do império português na América, alimentou o capitalismo mundial e financiou a prosperidade européia.
Após a independência constituindo-se o Império do Brasil, configurou-se uma formação social que tinha o trabalho escravo como base econômica, a propriedade fundiária como monopólio da Coroa, até 1850 quando surge a Lei de Terras, a plantação de monoculturas, em especial de cana e de café, e a mineração, como base produtiva. Um sofisticado aparato jurídico e político, e a organização da burocracia administrativa imperial ordenou a mais nova monarquia constitucional do ocidente, herdeira de algumas das mais influentes famílias monárquicas européias, antecessora do Estado nacional brasileiro. O regime escravista brasileiro, perfeitamente integrado no sistema capitalista mundial perpetuou, por quanto tempo pode, o tráfico de escravos, mesmo após sua proibição internacional, em decorrência dos tratados internacionais, em desdobramento do Congresso de Viena, em 1815.
A Lei que proibiu o tráfico de escravos para o Império do Brasil foi editada em 1831. Daí cunhada a famosa expressão popular brasileira, “lei pra inglês ver”, em alusão à pressão do governo inglês, e sua poderosa marinha, pelo fim do comércio de africanos escravizados, e à inoperância da lei. Somente em 1850, sob forte pressão internacional, e intensa controvérsia política interna, a Coroa brasileira proibiu definitivamente o trafico de escravos. Parte fundamental da formação social brasileira foi constituída com base na escravidão, sua infra-estrutura econômica, sua sociedade civil e sua estrutura de Estado.
Mesmo após a abolição da escravidão, e da proclamação da República, o trabalho compulsório, inclusive de imigrantes europeus e asiáticos, por muitas décadas foi a base da produção nacional. Neste contexto o lugar social destinado à população negra esteve delimitado pelas referências oriundas no regime escravista. Assim, da formação do capitalismo brasileiro, até seus dias atuais o povo negro, apesar da persistência na luta, tem sido submetido a mecanismos de super exploração do seu trabalho, ao tolhimento das suas oportunidades, ao cerceamento dos seus direitos, ao racismo. O racismo tem cumprido papel fundamental na produção da riqueza nacional e na dominação social, submetendo milhões de brasileiras e brasileiros a condições de vida e trabalho inaceitáveis.
Durante todo período da escravidão povos africanos trazidos à América na condição de escravizados, em condições extremamente desfavoráveis, reconstruíram suas identidades étnicas e de afrodescendentes, em particular religiosas, de modos de vida, culturalmente híbridos, mas de matriz africana, inclusive a identidade classista escrava. Todas elas, cada uma ao seu modo, em contradição à escravidão. Também, desenvolveram inúmeras formas de resistência, informadas pelas referências identitárias em reconstrução, ou recém construídas, como as fugas, em muitos casos com o retorno à África, e a formação de quilombos, na impossibilidade delas, as várias formas de luta por aquilo que entendiam serem direitos básicos, inclusive com paralisações de trabalho e negociações com os senhores. É possível afirmar que a luta das classes trabalhadoras brasileiras tem sua origem nas lutas dos escravizados contra a escravidão, e por condições dignas de vida. Amalgamadas pelas experiências de luta contra a opressão acumuladas durante o período da escravidão e, no pós-abolição, em parcerias com outros grupos étnicos que migraram para o Brasil, contra a trabalho compulsório e por direitos trabalhistas e sociais constituíram-se, de forma imbricada, a identidade afrodescendente e a identidade afrobrasileira, assim como dos demais povos e comunidades tradicionais, subsumidas pela identidade popular brasileira, informam, no fundamental, a formação do bloco de classes, frações de classes e segmentos sociais que dá sustentação ao projeto nacional liderado pelo PT.
Quando o PT se reconhecer desta tradição, e dela atualizar seu programa político e estratégia de poder cumprirá uma condição, universal de representação, necessária para constituir-se como o principal partido dirigente da revolução democrática no Brasil: ser portador de toda herança de lutas de todas as classes sociais, e etnias dominadas, no processo de constituição, e na atualidade da formação social brasileira, no seu centro a luta do povo negro contra a escravidão e o racismo. Neste sentido se constituirá em um partido negro.


Afonso Florence é deputado federal pelo PT/BA e Ministro do Desenvolvimento Agrário

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